Nosso bispo Dom Frei Wilmar Santin, O. Carm. escreveu um artigo para o seu blog pessoal que postamos aqui igualmente pela riqueza e orientação a respeito do cuidado com o idoso e religiosidade popular. Boa leitura e aproveite para visitar o blog e se desfrutar com os artigos de nosso bispo.
Dona Cesarina
Há certas pessoas que marcam as nossas vidas. O tempo passa, mas elas teimosamente permanecem em nossa memória e volta e meia aparecem em nossas lembranças. Uma das pessoas que, vira e mexe, recordo com carinho é uma antiga moradora da Vila Fanny, Curitiba, conhecida simplesmente como dona Cesarina. Toda vez que ela aparece em minha memória, sinto uma sensação de paz, de alegria e de contentamento. Não consigo ficar sem dar pelo menos um sorriso.
Dona Cesarina era uma negra, neta de escravos, nascida na Lapa, PR. Sempre que se referia à sua cidade natal, falava com orgulho dos atos heroicos dos lapeanos, no “Cerco da Lapa”, referindo-se ao sangrento confronto que envolveu pica-paus (republicanos) e maragatos (federalistas), em 1894, durante a Revolução Federalista. Na ocasião tombou em combate o famoso General Carneiro. Mas seu grande orgulho mesmo era falar sobre a “Gruta do Monge”, localizada no Parque Estadual do Monge e que serviu de abrigo ao lendário monge João Maria, em meados do século XIX.
A primeira vez que ouvi falar da dona Cesarina foi uma história ligada à gruta. O frei Antonio Ferraz, que morava em Curitiba, me contou que os freis de Curitiba fizeram um passeio até a Lapa e visitaram a Gruta do Monge. Antes de irem, a dona Cesarina tinha recomendado para visitarem a Gruta do Monge, porque lá Nossa Senhora aparecia às pessoas que tinham fé. Ela disse que toda vez que visita o lugar, sempre via Nossa Senhora. Quando voltaram, ela perguntou se o frei Antonio tinha visto Nossa Senhora. Ele respondeu que não. Desiludida sentenciou: “Que vergonha! Hoje em dia nem mais os padres têm fé!”
Quando em janeiro de 1972 mudei para o convento dos carmelitas da Vila Fanny, em Curitiba, para fazer o noviciado, logo no primeiro domingo conheci a dona Cesarina. Já era uma pessoa idosa, não posso precisar a sua idade, mas devia já ter uns 70 anos. Seu rosto transpirava a energia serena das almas fortes e tranquilas. Ela não faltava à missa um domingo sequer. Era uma figurinha carimbada na missa das 10h. Sempre chegava sorrindo e com a sua melhor roupa. Está na minha memória trajando um lindo vestido azul. Sempre brincávamos perguntado se ela estava procurando um noivo. Ela dava uma risada e dizia: “Eu não! Estou bem assim e não quero complicar a minha vida”. Um dia brinquei: “Nossa, dona Cesarina! Como a senhora está assanhada com este vestido azul!” Com bom espírito de humor e um olhar doce e meigo, ela retorquiu: “Se o frei está me achando assanhada, é porque está interessado, né!” E soltou uma gargalhada. Naquele dia eu poderia ter ido dormir sem essa. Aprendi a lição!
Dona Cesarina nunca casou, mas teve uma filha chamada Ivone. Habitava numa pequena casa que ficava uma quadra e meia distante da igreja. Com ela moravam: sua irmã Maria José, cujo apelido era Tijé, o sobrinho Eugênio Barbosa e sua esposa Maria Rosa com os filhos Barbosa, Dirceu, Jussara e Maria Elisa. Seu sobrinho era muito trabalhador, porém, quando bebia perdia o controle. O problema era ele ficar um fim de semana sem beber. Portanto, essas bebedeiras do sobrinho se constituíam um dos “espinhos na carne” (cf. 2Cor 12,7) para a dona Cesarina.
Seus rendimentos vinham da lavagem de roupa “pra fora” que fazia em casa. Mas também contava com uma ajuda mensal de um médico chamado Dr. Alan, para o qual ela trabalhou como doméstica por muitos anos. Sem esta ajuda do Dr. Alan teria sido muito difícil colocar comida suficiente naquela casa em que 7 pessoas dependiam dela.
Durante quatro anos nós, carmelitas de Curitiba, compramos a comida pronta, da “Refeições Colonial”, que fornecia alimentação para funcionários de empresas. Sempre sobrava feijão, arroz, macarrão, etc. Jogar aquela comida fora, seria um pecado. Passamos a dar para a dona Cesarina. Está impregnada na minha memória a imagem dela toda feliz indo buscar a comida.
Nas festas da Igreja, ela sempre se encarregava da salada. Com uma grande alegria e desejosa de prestar seu serviço à sua comunidade eclesial, passava o dia anterior à festa preparando a salada, para assim cumprir as palavras de Jesus: “Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós, seja vosso servo. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mt 20,26-28).
Na década de 1970-80, no mês de outubro, a Arquidiocese de Curitiba organizava uma grande romaria para o Santuário de Nossa Senhora Aparecida. A Paróquia Nossa Senhora da Conceição sempre participava lotando um ônibus. A dona Cesarina não falhava, todo ano era a peregrina mais assídua e devota do grupo.
Para pagar a passagem e hospedagem, ela ia colocando moedas numa lata de leite Ninho. Evidentemente, devido à inflação, quando chegava o momento de pagar, o dinheiro guardado na lata não era suficiente. Por sorte, várias pessoas generosas, que a conheciam, faziam “uma vaquinha” e pagavam a sua passagem. Assim anualmente, ébria de felicidade, ia para Aparecida contagiando a todos com sua simpatia e alegria.
Costumava levar frango com farofa e bolachas pra comer durante a viagem. Numa das viagens, uma senhora se incomodou porque a dona Cesarina estava sempre comendo e reclamou. Prontamente recebeu a resposta: “Eu como com minha boca e a senhora não tem nada com isso. Eu estou com fome e vou continuar comendo!”
Certo dia lhe perguntei:
- “Dona Cesarina, quantas vezes a senhora já foi para Aparecida?”
- “Vinte sete vezes!”, respondeu.
- “Mas já não está bom?”
- “Não, porque no ano em que eu não for, será o ano da minha morte. Se eu não for lá, como vou aguentar todos os sofrimentos da minha vida?”.
Ali percebi claramente a força da piedade popular na vida das pessoas pobres e simples. Em 1975 na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi – sobre a Evangelização no mundo contemporâneo, o Papa São Paulo VI chamava a atenção para a importância da religiosidade popular e esclarecia: “traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se observam alhures no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vida cotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção, etc. Em virtude destes aspectos, nós chamamos-lhe de bom grado "piedade popular", no sentido religião do povo, em vez de religiosidade” (nº 48)[ [1] ].
Uma vez que fui em sua casa, encontre-a agitada com um pedaço de pau na mão. Fiquei espantado e lhe disse:
- “Dona Cesarina, vim visitar a senhora e a senhora me recebe com um cacete querendo me dar uma camaçada de pau?”
- “Não, não quero bater no senhor não! Deus me livre de bater num padre! Valha-me Nossa Senhora Aparecida! Eu que é matar uma cobra verde que apareceu aqui no quintal. Pra sorte dela e demorei pra encontrar este pau. Ela é muito rápida e escapou”, prontamente explicou.
- “Mas Dona Cesarina, a senhora não sabe que matar cobra verde é um crime inafiançável? E se a senhora matar esta cobra, vai ser presa por 5 anos sem direito a ter um advogado?”
Espantada, arregalou os dois olhos e, com um olhar de desdém e com uma cara manifestando desconfiança, me perguntou: “E por que matar cobra verde é crime inafiançável?”
- “Porque tem que deixar a cobra amadurecer!”, retruquei.
Ela redarguiu num linguajar bem caboclo: “Quá! E cobra verde madróce?”
Como mencionei acima, a dona Cesarina já era idosa quando a conheci. Se olharmos a realidade de hoje em dia, o número de idosos tem aumentado muito. Felizmente a Igreja tem se preocupado com esta situação, por isso criou uma própria pastoral, a saber, a Pastoral da Pessoa Idosa. O Papa Francisco tem um carinho todo especial pelos idosos, tanto é que fez uma série 18 de catequeses sobre a velhice em 2022. Um ano antes já tinha instituído o “Dia Mundial dos Avós e dos Idosos”. Na ocasião da sua instituição, o Santo Padre mencionou a celebração da Festa da Apresentação de Jesus no Templo, que aconteceria dois dias depois, e citou os idosos Simeão e Ana que, “iluminados pelo Espírito Santo, reconheceram Jesus como o Messias” (Cf. Lc 2,22-40) e que “Eles recordam-nos que a velhice é um dom e que os avós são a ligação entre as gerações, para transmitir aos jovens a experiência da vida e da fé. Os avós são muitas vezes esquecidos e nós esquecemos esta riqueza de preservar as raízes e de as transmitir. Por esta razão, decidi instituir o Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que terá lugar na Igreja inteira todos os anos no quarto domingo de julho, na proximidade da festa dos Santos Joaquim e Ana, os “avós” de Jesus” [ [2] ] (Ângelus, 31/01/2021).
O Sucessor de Pedro tem sido coerente e todos os anos tem rezado, na Basílica Vaticana, uma missa solene no Dia Mundial dos Avós e dos Idosos. No primeiro ano de celebração deste Dia, Papa Francisco concluiu assim a sua homilia:
“Irmãos e irmãs, os avós e os idosos são pão que nutre a nossa vida. Sejamos agradecidos pelos seus olhos atentos, que se aperceberam de nós, pelos seus joelhos que nos deram colo, pelas suas mãos que nos acompanharam e levantaram, pelos jogos que fizeram conosco e pelas carícias com que nos consolaram. Por favor, não nos esqueçamos deles. Aliemo-nos com eles. Aprendamos a parar, a reconhecê-los, a ouvi-los. Nunca os descartemos. Guardemo-los amorosamente. E aprendamos a partilhar tempo com eles. Sairemos melhores. E juntos, jovens e idosos, saciar-nos-emos à mesa da partilha, abençoada por Deus”[ [3] ] (25/07/2021).
Pouca gente ainda se recorda da Dona Cesarina. Com o tempo a memória de sua existência está se apagando. Porém, ela não pode simplesmente ser descartada, merece ser lembrada como uma mulher forte e lutadora, deve ser reconhecida como uma verdadeira heroína e sua memória preservada, por isso, parodiando o grande locutor esportivo Fiori Gigliotti, carinhosamente concluo dizendo: “a Dona Cesarina ficará por todo o sempre incrustada na ternura e sinceridade do nosso cantinho de saudade”.
+ Wilmar Santin. O.Carm.
Itaituba, 15 de agosto de 2023.
Solenidade da Assunção da Virgem Maria
[1] <https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi.html>